segunda-feira, julho 25, 2005

ASSUNTOS DO DEMO

Infernal Affairs é um thriller criminal criteriosamente manufacturado, do texto à fotografia, passando pela (excelente) selecção do elenco, com dois actores de primeira linha, acompanhados por dois óptimos secundários (Anthony Wong e Eric Tsang). Na sua essência, a narrativa não nos traz nada de novo; agentes infiltrados, com problemas de integração num e noutro lado da lei, não são raros mesmo fora do cinema de Hong Kong (aqui ocorrem-nos duas interpretações de Chow Yun-fat – em Hard Boiled, 1992, e City on Fire, 1987, esta última adaptada por Tarantino para «Cães Danados/Reservoir Dogs», com Tim Roth na posição de Chow). A relação entre os dois homens, em conflito gerado por motivos profissionais, com espaço para alguma admiração e respeito (mútuo ou não), também é um tema clássico (para não dizer cliché), mas o argumento de Alan Mak e Felix Chong Man-keung adiciona mais algumas camadas, nomeadamente o menos usado ingrediente do tríade infiltrado na polícia. Não sendo raro vermos um polícia corrupto ou a colaborar directamente com os criminosos, é menos frequente que surja como um verdadeiro agente infiltrado e treinado para esse fim.

Andrew Lau dirigiu um filme que se leva a sério do início ao fim, com o acento tónico no desenvolvimento do texto e no conflito (interno e externo) das suas personagens. Leung e Lau conseguem transmitir-nos as agruras do inferno que calcorreiam no dia-a-dia, ainda que em planos diferentes; o primeiro aproxima-se e revela-se mais ao espectador, enquanto que o Ming de Lau se apresenta algo indefinido até perto do final, quando tem de tomar decisões irrevogáveis. O inferno de Yan é mais óbvio, o seu trabalho no seio da tríade torna-se insuportável, enquanto o de Ming é mais um estado de espírito, um dilema moral, mas também a forte consciência de poder deitar tudo a perder (o filme ilustra uma vida cada vez mais perfeita, com a promoção e o novo apartamento). Tal é reflectido nas interpretações dos dois actores, sendo natural que Leung Chiu-wai se destaque (ganhou o prémio de interpretação masculina nos Hong Kong Film Awards). Mas Lau, num desempenho contido e subtil, transmite satisfatoriamente os constrangimentos da sua personagem e sobretudo a sua indefinição.

O argumento apresenta-se de forma precisa, rigorosa, quase matemática, pelo que nos vemos constrangidos a usar o termo “reviravolta” para nos referirmos a um par de surpresas ou choques com que somos confrontados. A severidade com que o material é moldado, confere grande credibilidade a esses momentos, que nos surgem como mero acaso ou consequências naturais de uma decisão tomada. Consegue-se também, curiosamente, gerar uma reacção de frustração perante alguns acontecimentos ao mesmo tempo que somos levados a questionar certos conceitos de “final feliz”. Nesse plano, o final alternativo, aparentemente criado para satisfazer as autoridades da RPC, e destinado à estreia nesse território, afere-se com redobrada inadequação.

É preciso notar que não estamos perante um filme de acção, nem Andrew Lau se preocupou particularmente com a gestão dos momentos mais movimentados por entre o diálogo. É uma obra que vive da tensão criada por um jogo de gato e rato onde se torna difícil saber quem assume qual posição no tabuleiro e a atmosfera criada pela montagem, música e cuidada fotografia (de Andrew Lau e Lai Yui-fai; Christopher Doyle, que ganhou o troféu nos HKFA por «Ying Xiong/Hero», trabalhou no filme durante alguns dias e recebeu um crédito de consultor visual), aliada ao excelente elenco, combinam-se para tomar a forma de um grande thriller, fadado a tornar-se uma referência durante os próximos anos (e com remake já em filmagem interpretado por Leonardo diCaprio e realizado por Martin Scorcese).
A metáfora do sofrimento ininterrupto é introduzida no texto de abertura, que se refere ao pior dos Oito Infernos – o Inferno Contínuo. É desse conceito que decorre o título original em chinês (wujian dao – via ou caminho infinito, sem fronteiras). Em «Infernal Affairs», cedo se estabelece que a saída dessa via de infindáveis tormentos conduz a um conflito mortal.

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